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Sábio, Galileu ouve Narciso, pois quem avisa amigo é

Gregos e romanos chamavam os demais povos de bárbaros. (Pouquíssimos tiveram o ímpeto sincrético de Alexandre Magno, para quem mesmo Aristóteles, seu preceptor, fora provinciano, por menosprezar a cultura e a cosmovisão orientais – ainda que o motor sincrético do expansionismo helenista de Alexandre, o Grande, tenha sido a guerra.)

O politeísmo, religião oficial de Roma, perseguia os cristãos, a ponto de os seguidores de Jesus Cristo terem que viver em catacumbas na periferia da cidade (dita) eterna para não se tornarem sobremesa para os leões do coliseu.

Elevado à condição de religião oficial de Roma pelo imperador Constantino, o cristianismo ofereceu não a outra face, mas o beijo de Judas na bochecha dos politeístas que passou a perseguir.

O judeu Jesus Cristo precisou ensinar a seus patrícios de fé que os samaritanos também eram capazes de boas ações. (E isso a despeito de a sabedoria judaica nos revelar, desde o Velho Testamento, que o primeiro homicídio foi um fratricídio: Caim, assassino de seu irmão Abel.)

Católicos e protestantes reeditaram o dilúvio divino, na Europa, com o sangue jorrado por suas guerras religiosas movidas pelo narcisismo de suas verdades tão bivitelinas quanto mutuamente excludentes.

Cristãos chamavam muçulmanos de infiéis e fizeram despencar sobre eles as cruzadas. Muçulmanos chamavam cristãos de infiéis e fizeram despencar sobre eles a jihad.

Perseguidos na Europa pelos católicos, que os chamavam de hereges, muitos protestantes cruzaram o Atlântico e se estabeleceram nos Estados Unidos, onde passaram a perseguir e a pilhar os povos originários, a quem chamavam de infiéis.

Em nome de Deus (e de um recorrente etnocentrismo), o processo de colonização europeia das Américas engendrou um dos maiores genocídios da história humana, a ponto de a cruz cristã encarnar, de fato, a morte. Assim na terra como no céu? Não. Assim no céu como na terra.

Quando os incas logravam matar espanhóis, detentores da pólvora, os andinos lançavam os cadáveres dos europeus nas águas, a fim de verificar se os piratas invasores também eram capazes de boiar como os incas. (O nome da capital do império inca, Cusco, se ligava, em quéchua, ao “umbigo do mundo”, pois, a despeito de os europeus se considerarem a primeira e a última bolachas do pacote, os incas, demasiado humanos, também se consideravam o protótipo do que é humano.)

A Santa Inquisição caçava, torturava, julgava e decapitava, não necessariamente nesta ordem, quaisquer indícios de heresia e ateísmo.

O stalinismo ateu caçava, torturava, julgava e decapitava, não necessariamente nesta ordem, quaisquer indícios de heresia e religiosidade.

Certa vez, uma das filhas de Karl Marx, pai do socialismo (dito) científico, pediu ao pai que lhe dissesse qual era seu mais importante lema. O alemão cofiou sua barba desgrenhada de profeta e redarguiu:

– Duvide de tudo!

A República Democrática Alemã, também conhecida como Alemanha Oriental, era governada pelo Partido Socialista Unificado (PSU), cujo lema era “Die Partei hat immer Recht” (“O Partido sempre tem razão”). Caso os súditos da Alemanha Oriental quisessem recorrer a Marx para interpelar o marxismo-leninismo bíblico, o PSU prontamente lançava mão da Stasi, a versão germânica do onipresente, onipotente e onisciente KGB soviético, que, ao levar pais a delatarem filhos e esposas a delatarem maridos, secularizou, efetivamente, a seguinte prédica de Jesus Cristo: “Quem é meu pai? Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? Deixem que os mortos carreguem seus mortos”.

Helena de Troia, em nome de quem se fez a guerra, afaga o rosto de Narciso e suspira:

– Eu te amo!

De olhos fechados, Narciso redargui:

– Eu também.

Em tempos de paz – isto é, em períodos entreguerras –, Narciso decreta o dogma como a verdade.

Em tempos de guerra – se queres paz, prepara-te para a guerra –, Narciso recruta as fornalhas do fanatismo como a verdade.

Nada gera mais incômodo ao narcisismo da verdade unívoca e autocentrada do que o ceticismo a colocar sob o crivo da dúvida a tudo e a todos.

Como perguntar não ofende – a menos que se trate da multidão narcísica que monta o dorso de suas certezas/birras inabaláveis –, Narciso interpela o cético:

– Você consegue apontar seu ceticismo contra a própria têmpora?

Você consegue duvidar de si mesmo?

Eis que o cético engasga em seu próprio silêncio dogmático. Dois irmãos, Pedro e Judas, brigam como gato e cachorro. Eis que o vizinho Paulo aproveita a deixa para malhar o Judas, seu velho desafeto, no que Pedro, o primogênito, dá uma sova em Paulo, que já não consegue entender mais nada.

O pai não elogia o filho; a mãe não elogia a filha; o namorado não elogia a namorada (fogo cruzado não dói: a namorada não elogia o namorado). Entretanto, quando o filho, a filha e a namorada se sagram campeões, o pai, a mãe e o namorado só fazem alardear, com peito estufado e a plenos pulmões, para seus muy amigos e todos e cada um dos vizinhos:

– Viram só?!

Assim falou Luís XIV, o rei Sol:

– Depois de mim, que despenque o dilúvio, pois o Estado sou eu.

Se cada um (cada família, cada cidade, cada estado, cada país, cada povo, cada cultura) é o Sol de si mesmo, o outro, como vassalo e satélite, sempre e a cada momento precisa girar ao redor de mim mesmo.

Satisfeitíssimo por ter o universo como sua própria órbita, Narciso sentencia (já com seu hábito de cardeal):

– Ainda bem que o teimoso Galileu deu o braço a torcer e acabou me ouvindo… Quem avisa amigo é!

 

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