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A verdade das máscaras

Não poucas vezes, há uma fronteira muito tênue entre a honestidade e a estupidez; a sinceridade e o silêncio; a confissão e a omissão; a verdade e a crueldade. (Não à toa, Cazuza sentenciou: “Mentiras sinceras me interessam”.)

Ao tentarmos cruzar tal fronteira resguardada não por pastores alemães e muros encimados por arame farpado, mas pela névoa espessa dos paradoxos de que somos feitos, descobrimos, trêmulos, que também somos sentinelas de nós mesmos. 

Se eu sou eu e minha circunstância, como quer José Ortega y Gasset, tanto melhor se a consciência puder canalizar (e soterrar) nossas lembranças como memórias do subsolo. 

Ah, a consciência… Ela beija – enquanto nos morde. 

*Pergunta*: Não é a memória o tecido de que é feita a vida?

*Resposta de Nelson Rodrigues*: Que seria da tradição sem a toalha de mesa que encobre o pezinho da noiva pousado, delicada e incisivamente, sobre o mocassim 44 do melhor amigo de seu futuro marido? 

A tradição está para a contradição, assim como a venda sobre os olhos da Justiça está para o esconde-esconde do conhece-te a ti mesmo. 

Tudo posso, mas nem tudo me convém – assim pregou o apóstolo Paulo. 

Para dilatar as fronteiras da nossa conveniência (eu sou eu e minha circunstância), os usos e costumes recobrem o clamor da vida com o véu do decoro. 

Antes de acusarmos, com o dedo em riste, a desfaçatez do decoro conveniente, sob cujo véu a vida pulsa, perguntemo-nos: 

– Da caixinha de Natal que escorregamos para o guarda de trânsito dentro da CNH, passando pelo “Que fale agora ou se cale para sempre”, até mais um divórcio litigioso, a vida social funcionaria um dia sequer (um minuto sequer!) sem a hipocrisia? 

Que atire a primeira pedra quem nunca se escondeu de si mesmo… 

Após realizar com minúcia a anatomia da nossa condição, Oscar Wilde descobriu a verdade das máscaras. 

Se pudéssemos olhar para o espelho sem as máscaras que nós somos, quem veríamos? 

A caveira de Hamlet? 

Só a morte, então, nos torna verdadeiros? 

Consta que o filósofo Diógenes de Sínope se liberara de todo o fardo hipócrita da vida. 

Diógenes vivia, nu, dentro de um barril. 

Diógenes carregava, com o sol a pino, uma lanterna. 

– O que é que você busca, Diógenes, que mesmo o sol do meio-dia não te pode revelar? 

– Procuro um amigo. 

A fama do abnegado Diógenes percorreu a Hélade com tamanha celeridade e ubiquidade, que ninguém mais, ninguém menos que Alexandre, o Grande, secundado por seu séquito de generais, quis conhecer o filósofo-mendigo ao passar por sua vila. 

Quando Alexandre, o Grande, se aproximou de Diógenes, a sombra do maior conquistador do mundo antigo se espraiou como uma colcha (ou seria uma mortalha?) sobre o pensador sem-teto, que ainda dormia. 

Diante do sono pesado de Diógenes – e para evitar que Alexandre, o Grande, esperasse um instante a mais que fosse –, um de seus generais chuta a sola do pé direito de Diógenes, que acorda em sobressaltos, como que içado de um pesadelo, e começa a coçar o cocuruto e a caçar piolhos. 

Entre bocejos de Diógenes, Alexandre, o Grande, lhe dirige a palavra:

– Você sabe quem eu sou, Diógenes? 

Banhado pela sombra de Alexandre, Diógenes contempla o conquistador-mor dos pés à cabeça e redargui: 

– Não… Mas você, sim, sabe quem eu sou…

Tendo perdido a oportunidade de chutar o pé de Diógenes como o primeiro general puxa-saco o fizera, um segundo oficial comandado por Alexandre se revolta e ameaça desembainhar a espada contra o desaforado Diógenes. A um aceno de Alexandre, o Grande, o militar se aquieta. 

– Pois saiba, Diógenes, que eu sou Alexandre, o Grande, e que minhas conquistas militares expandiram a cartografia do mundo tal como nós o conhecemos. É comigo que você fala, pobre diabo… 

Ainda banhado pela sombra de Alexandre e entre mais bocejos, Diógenes volta a contemplar o conquistador-mor dos pés à cabeça. Súbito, ele redargui: 

– Pois, Alexandre – é assim que você se chama, certo? –, por que você bloqueia o meu sol? Ora, não roube de mim aquilo que você não pode me dar… 

Ato contínuo, os generais, boquiabertos, desembainham suas espadas.

A um aceno de Alexandre, o generalato se aquieta. 

Consta que, depois do último brinde que Alexandre propôs a seu generalato no jantar daquele dia, o conquistador-mor teria dito:

– Saibam que, se eu não fosse Alexandre, quereria ser Diógenes… 

Se Alexandre não fosse Alexandre, o Grande… 

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